sábado, 9 de setembro de 2017

Lenda do Milagre das Rosas

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Chegara o mês de Janeiro. Em Coimbra, as casas das monjas de Santa Clara, quase destruídas pelas cheias do Mondego, reconstruíram-se rapidamente. Isso fora possível porque a rainha Dona Isabel velava por elas.
Quando algum desgraçado se via sem pão dentro dum lar minado pela doença, logo procurava a sua rainha. E se nem sempre regressava com saúde para o corpo, pelo menos trazia pão para a boca, e palavras tão lindas ressoando aos seus ouvidos, que por si só já constituíam consolação para o seu espírito.
De todos, essa esposa e filha de reis cuidava como se fossem pessoas suas. Levava o seu zelo ao ponto de ir ela própria vigiar os trabalhos em curso nas casas das monjas. E os operários, desvanecidos com a real presença, e ainda com os auxílios monetários que Dona Isabel trazia aos mais necessitados, trabalhavam com redobrado ardor.
Porém, como acontece neste mundo, a rainha não tinha somente amigos. E certa vez um despeitado da corte procurou azedar o ânimo de el-rei D. Dinis. Aproveitando um dos momentos em que estava a sós com o rei, encetou o diálogo que há muito andava bailando no seu cérebro:
— Perdoai-me, Senhor, se me atrevo a falar-vos num assunto que me traz preocupado.
O rei olhou-o com certa altivez.
— Deixai-vos de rodeios. Dizei o que pretendeis.
O cortesão mordeu os lábios e disse:
— Senhor meu Rei... A Rainha, vossa digna esposa, dispõe com bastante liberdade do vosso tesoiro.
D. Dinis franziu as sobrancelhas:
— Que dizeis? Explicai-vos e já!
O fidalgo tornou com humildade fingida:
— Meu Senhor, acreditai no que vos digo... A Rainha gasta de mais...
— Mas como sabeis isso?
— Oh? E fácil de saber, meu Senhor... Só os vossos bons olhos não querem ver a verdade. Se me permitis...
O rei encolerizou-se.
— Falai! Mas falai duma vez!
O fidalgo baixou a cabeça e declarou numa voz um tanto incerta:
— Oh, meu Rei e Senhor! Só vos quero ajudar… O dinheiro desaparece, esgota-se, some-se... São as esmolas, as obras das igrejas, os empréstimos, as dádivas, as doações a conventos… enfim... uma loucura, Senhor! É necessária a vossa intervenção...
Um grito do rei de Portugal cortou-lhe a frase:
— Basta! Eu sei bem o que hei-de fazer!
D. Dinis levantou-se, fazendo recuar o fidalgo. Em largas passadas pelo aposento, procurava acalmar a impetuosidade do seu temperamento belicoso. Seria verdade o que acabavam de dizer-lhe? Sim, devia ser verdade. A mentira representaria nesse momento um desmedido arrojo. E ao homem que ele tinha na sua frente sobrava-lhe em mesquinhez o que lhe faltava em audácia. E todavia… o vir à sua presença pôr em cheque a própria rainha não seria já um acto destemido?
O rei parou de andar dum extremo ao outro da saleta. Olhou fixamente o fidalgo, que baixou os olhos, e ordenou:
— Deixai-me só! Preciso de pensar no caso sem a sensação de estar a ser espiado.
Inclinando a cabeça, o fidalgo retirou-se em silêncio. Conhecia bem o rei e sabia de antemão que as suas declarações o tinham impressionado. Quanto ao monarca, logo que ficou longe das vistas do seu súbdito, deixou-se cair numa cadeira, murmurando consigo mesmo: «É isso! Tenho de pôr cobro de uma vez para sempre aos hábitos excessivamente misericordiosos da Rainha! E será o mais breve possível!»
Ora, se bem o pensou melhor o fez. Dias depois, quando Dona Isabel saía dos paços de Coimbra acompanhada pelas damas e pelos cavaleiros do seu séquito para se dirigir às obras de Santa Clara e espalhar as suas esmolas, surgiu-lhe de súbito, pela frente, a figura desempenada do rei. Ele cumprimentou-a, cortesmente:
— Bom dia, Senhora! Ia partir para uma caçada, mas lembrei-me de vos saudar.
— Agradeço-vos a boa ideia, Senhor.
A rainha disse estas palavras sorrindo, mas instintivamente recuou um pouco, como a disfarçar o que levava no regaço. Porém, esse gesto embora mal esboçado não escapou à perspicácia de D. Dinis. Tentando esconder a suspeita que o assaltara, ele perguntou de novo, com a cortesia própria dum rei:
— Podeis dizer-me, Senhora, onde ides tão cedo?
Dona Isabel empalideceu. O coração bateu-lhe mais apressado e, após certa hesitação, respondeu com voz branda:
— Vou... armar os altares do mosteiro de Santa Clara.
Então el-rei olhou-a de sobrecenho carregado. A sua voz tornou-se menos agradável. O sorriso cortês desapareceu-lhe dos lábios, enquanto perguntava:
— E que levais no vosso regaço, Senhora? À-la-fé que pareceis receosa. Nem quero acreditar que pretendeis ir distribuir novas esmolas pelos vossos protegidos... Isso seria contra todas as minhas ordens e contra todos os meus conselhos. Dizei-me, pois, o que levais no regaço.
A rainha tornou-se ainda mais pálida e por momentos permaneceu silenciosa. Elevava a Deus o pensamento, pedindo-Lhe aflitivamente o Seu divino auxílio. Alarmada, toda a comitiva olhava o rei, receosa da sua cólera. D. Dinis fixou de frente a rainha, que dava a ideia de estar presente apenas em corpo. Sentiu fugir-lhe toda a calma de que se tinha revestido e gritou-lhe:
— Então, Senhora, terei de dar ouvidos aos rumores que circulam à minha volta? Sempre é verdade que levais no vosso regaço dinheiro para oferecer aos maltrapilhos que protegeis?
Dona Isabel olhou o rei como quem torna dum sonho. O rubor voltava-lhe às faces, o sorriso brincava-lhe de novo nos lábios. E na sua voz melodiosa e pausada, respondeu:
— Enganai-vos, Real Senhor.. O que levo no meu regaço... são rosas para enfeitar os altares do mosteiro!
D. Dinis sorriu com ironia.
— Rosas? Como vos atreveis a mentir, Senhora? Rosas em Janeiro?... Pois ficai sabendo: se aqui estou neste momento… se aqui vim, é porque alguém me garantiu que leváveis dinheiro... Compreendeis agora?
O rosto da rainha não se contraiu sequer, humildemente. E, ante o pasmo e a aflição de quantos a rodeavam, insistiu com firmeza:
— Enganai-vos, Senhor! E enganou-se também quem vos informou. São rosas o que levo no regaço!
D. Dinis cerrou os dentes. Os seus olhos brilhavam de cólera e a sua voz tornou-se ainda mais dura:
— Insistis na vossa mentira, Senhora? Então... mostrai-me essas rosas!
Serenamente, ante o olhar atónito do rei e de todos os que ali se encontravam, a rainha Dona Isabel abriu o regaço e deixou ver um ramo de rosas maravilhosas, enquanto murmurava:
— Vede, Senhor.. Vede com os vossos olhos!
Houve um ligeiro murmúrio de pasmo entre a comitiva. El-rei D. Dinis, diante de tão grande prodígio, olhava atónito para as flores e para as mãos da rainha, sem conseguir pronunciar uma palavra. Estava certo de que acontecera algo de sobrenatural. Algo de estranho que o impressionava e confundia. E só momentos depois conseguiu sorrir e murmurar:
— Perdoai-me, Senhora, se vos ofendi... Mas nunca pensei ver rosas tão lindas neste tempo!
Ela sorriu-lhe meigamente. Havia felicidade no brilho dos seus olhos, na suave expressão do seu rosto, no bondoso sorriso dos seus lábios. Cumprimentando-a com galhardia, o rei afastou-se, deixando que a rainha seguisse o seu caminho.
Então, de novo, Dona Isabel elevou os olhos ao Céu. O seu ar harmonioso e a paz que resplandecia do seu rosto entraram na própria alma de quantos compunham a sua comitiva. Ninguém se atrevia a falar, a fazer um gesto sequer. Sentiam a solenidade do momento com uma alegria interior de difícil exteriorização.
Foi a própria rainha quem deu o sinal de continuar a marcha a caminho do mosteiro de Santa Clara. Lá a esperavam os desgraçados que viviam das esmolas da sua mão benfeitora, do seu olhar carinhoso, da sua palavra tão cheia de consolação. E lá estavam também os altares, esperando a sua graciosa ajuda.
Daí a pouco já toda a cidade de Coimbra se encontrava ao corrente do estranho prodígio que representava o pão e o dinheiro transformados em rosas. O povo, proclamava, de lágrimas nos olhos: «Foi um milagre! Foi um milagre! É santa a nossa rainha! Bendito seja Deus que a deu ao nosso reino!»
E o povo, gente grande com alma de menino, dentro das suas inesperadas reacções, é aquele cuja voz deve ecoar no Céu.
Assim, saltitando de boca em boca, o milagre das rosas chegou até nós e continuará para além dos séculos.
Fonte Biblio MARQUES, Gentil Lendas de Portugal Lisboa, Círculo de Leitores, 1997 [1962] , p.Volume IV, pp. 291-294

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